Se o tabaco não existisse, não existiria um terço dos cânceres, segundo estimativa da Organização Mundial da Saúde (OMS)”, avisa a oncologista Carolina Kawamura, membro do Comitê Científico do Instituto Vencer o Câncer. O tabagismo é o principal fator de risco para o câncer e responsável por 22% das mortes pela doença. No câncer de pulmão, é responsável por até 90% dos casos. Por isso o tabagismo é considerado a principal causa de morte prevenível do mundo.
São mais de 7 milhões de pessoas que morrem a cada ano no mundo por causa do tabagismo – desse total, mais de 6 milhões são pelo uso direto do tabaco e quase 900 mil de pessoas expostas ao fumo passivo. O cigarro não é o único vilão.
“O aparelho respiratório não foi feito para inalar fumaça, seja qual for”, destaca o pneumologista Marco Aurélio Scarpinella Bueno, do hospital Albert Einstein. O uso do tabaco, em qualquer uma de suas formas, é responsável pelos números alarmantes. “Inalar fumaça faz mal ao sistema respiratório por inúmeras razões: destrói os cílios dos brônquios que ajudam a eliminar as impurezas, resseca o aparelho respiratório, que dessa forma não filtra adequadamente a qualidade do ar, expõe o organismo a substâncias tóxicas”. A longo prazo, além de aumentar o risco de desenvolvimento de tumores, é fator de risco para doenças cardiovasculares e respiratórias, entre outras.
Muito além do cigarro tradicional
Normalmente, quando se fala em câncer de pulmão, a associação imediata é feita com o cigarro. Entretanto, é importante saber que não apenas o cigarro é fator de risco para esse tipo de câncer, mas toda forma de uso do tabaco. E também fundamental entender que o tabaco é fator de risco para diversos tumores, não apenas de pulmão.
“O cigarro industrializado, que se compra na padaria, tem mais de 4 mil substâncias tóxicas”, alerta o pneumologista. “Mas hoje em dia há outras formas de consumo de tabaco, especialmente entre os jovens. Como essa ‘epidemia’ de cigarros eletrônicos em vários formatos, que são em geral uma bateria e um recipiente onde se coloca nicotina líquida e aditivos como chocolate, mentol, hortelã”.
Entre os vários formatos, há desde os que seguem o modelo de cigarro tradicional até alguns semelhantes a uma USB, que os jovens conseguem levar no passeio com os amigos e até entrar na escola. “O cigarro eletrônico foi lançado como uma tentativa de ajudar na cessação do tabagismo, o que é uma grande discussão na literatura médica. Mas virou moda entre a molecada”, lamenta Scarpinella, ponderando que uma opção que foi criada pensando em ajudar fumantes a pararem de usar tabaco está servindo de porta de entrada para jovens. “Como não há regulamentação clara no Brasil sobre publicidade de cigarro eletrônico, muitos driblam a lei antitabaco. A legislação brasileira proíbe que programas de TV exibam pessoas fumando, mas de uns tempos para cá têm aparecido cigarros eletrônicos em filmes, séries”.
Para o médico, toda discussão que houve em relação à propaganda de cigarro precisará acontecer em relação à veiculação de cigarro eletrônico. Ele explica que nos Estados Unidos se evita o uso dessa alternativa em programas de TV e o FDA – órgão americano regulamentador – tomou para si a regulação. Apesar de o cigarro eletrônico não ser liberado para venda no Brasil, existe opções disponíveis no mercado. “Já é sabido que a emissão de vapor pelo cigarro eletrônico emite substâncias tóxicas, algumas carcinogênicas, em quantidades bem menores do que no cigarro tradicional”. Apesar da quantidade ser pequena, o médico destaca que ainda não se sabe se é suficiente para prejudicar o organismo.
Ele lembra que o narguilé, que já esteve na moda entre os jovens, é uma forma de consumo de tabaco. “Diferentemente do cigarro eletrônico, já se sabe que o narguilé não é isento de risco e seu consumo sabidamente está relacionado a câncer de pulmão e várias doenças respiratórias”. Além de usar carvão e eliminar monóxido de carbono, entre outras substâncias, como seu uso é compartilhado, aumenta o risco de transmitir doenças de contato como herpes e Hepatite B.
Nicotina, droga muito poderosa
Apesar de o senso comum gerar a ideia de que a nicotina é a responsável por causar câncer, ela não é fator de risco para tumores. As doenças ligadas ao tabagismo, não apenas câncer, mas doenças cardiovasculares e do sistema respiratório, são provocadas por muitas das substâncias tóxicas presentes nas várias formas de se usar tabaco.
O que leva a nicotina a ser uma grande vilã para fumantes é seu alto poder de criar dependência. “A nicotina cria dependência como nenhuma outra droga que a gente conhece. Há estudos mostrando que o poder de adição é 30 vezes maior que da cocaína”, ressalta o pneumologista. “É difícil ver uma droga que a pessoa usa e 20 minutos depois quer de novo”.
Scarpinella explica que o poder viciante da nicotina é tão forte que deixa memória no cérebro por anos, mesmo depois de cessar o tabagismo. “Não é estranho ver pessoas que pararam de fumar e 20, 30 anos depois sonharem que estão fumando”.
O vício é provocado através de mecanismos de recompensa: a nicotina aumenta a dopamina no cérebro; a dopamina é uma droga que dá prazer, o que faz a pessoa sentir-se bem fumando. Conforme o pneumologista, depois de 90 dias de uso o vício se estabelece fortemente e essa memória persiste por anos.
Devido a esse grande poder viciante, o alerta é sempre válido: a melhor forma de não fumar é não começar. A boa notícia é que, apesar de ser difícil, é possível parar de fumar.
Dependência é doença crônica e tem tratamento
Há dois pontos importantes que o fumante precisa levar em conta quando vai parar de fumar: ter motivação e entender que a dependência de nicotina é uma doença crônica que precisa de tratamento.
“Os familiares, amigos, profissionais de saúde devem motivar e saber que não adiantar fazer terrorismo, dizer que a pessoa vai morrer”. Para o pneumologista, cabe a todos os profissionais de saúde, seja pneumologista, oncologista, cardiologista, enfermeiro, psicólogo, nutricionista, que todos perguntem se o paciente usa tabaco e, se fumar, questionar se pensa em parar – se a pessoa não quer, o ideal é esperar o momento oportuno. “É fundamental lembrar ao paciente que a OMS entende que a dependência de nicotina é uma doença crônica, e tem 2 códigos para identificar: dependência física e psíquica. A pessoa que não consegue parar precisa saber que não é por não ter força de vontade. É uma doença e necessita de tratamento”.
Quanto à questão sobre o cigarro eletrônico ajudar ou não a parar de fumar, o médico defende que sempre que o paciente apresentar essa dúvida, a resposta mais correta a dar é: “Não sei”, pela falta de conclusões, e explicar que ele não é inócuo de risco e que há outras opções.
Scarpinella cita formas consolidadas e liberadas no Brasil, farmacológicas e não-farmacológicas, como a Terapia Comportamental Cognitiva. As opções farmacológicas preveem reposição de nicotina com adesivo ou goma de mascar. “Sabemos a quantidade de nicotina presente nessas opções e o médico prescreve de acordo com o que for necessário. Em relação ao cigarro eletrônico, como não há regulamentação, não é liberado pela Avisa, não se sabe a quantidade de nicotina”. Há ainda medicações que podem ser indicadas pelo médico. “Repor nicotina é essencial para ajudar a diminuir os sintomas de abstinências”.
A importância de políticas públicas
Estudos apontam que quanto menor a renda e o nível de escolaridade, maior a chance de a pessoa fumar. A OMS estima que quase 80% dos 1,1 bilhão de fumantes do mundo vivem em países de baixa e média renda. Nesses locais, a carga das doenças relacionadas ao tabaco e morte é mais pesada.
O Ministério da Saúde brasileiro apresentou em maio deste ano uma pesquisa indicando que o número de fumantes caiu 40% no país nos últimos 12 anos: as pessoas com o hábito de fumar passaram de 15,6% da população em 2006 para 9,3% em 2018. Os dados são da Pesquisa de Vigilância de Fatores de Risco e Proteção para Doenças Crônicas por Inquérito Telefônico (Vigitel).
“Um importante fator de sucesso para a prevenção ao tabagismo é a iniciativa ter sido tratada como política nacional, sancionada pelo Executivo e aprovada pelo Legislativo”, avalia o médico e professor Luiz Antonio Santini, que foi diretor do Instituto Nacional do Câncer (Inca) de 2005 a 2015 e atualmente é consultor internacional de políticas de câncer, participa de grupos internacionais de pesquisa e atua na Fundação Oswaldo Cruz. “Houve um comprometimento do país, não apenas do Ministério da Saúde, mas de todos os níveis do poder, para implementação da política, além da governança, com comissão composta por 16 ministérios envolvidos em diversas etapas. É um trabalho de longo prazo, desde a proibição de propaganda na Fórmula 1, por exemplo, nos anos 90, a proibição de fumar em ambientes fechados, oferecimento de tratamento de fumantes pelo SUS, aumento de preços e impostos – medida considerada pela OMS a mais eficaz para reduzir o consumo de tabaco… Uma luta de vários anos”.
A OMS considera a proibição da publicidade de consumo de tabaco um importante fator para reduzir o consumo, e que o aumento de impostos – que eleva os preços do tabaco – é a forma mais custo-efetiva de melhorar os índices, especialmente entre jovens e pessoas com menor renda.
Santini alerta que é importante tratar o problema dos produtores, já que o Brasil é o primeiro exportador e o segundo maior produtor de folhas de fumo no mundo. “É preciso desenvolver políticas, através do Ministério da Agricultura, para dar proteção aos trabalhadores e, a médio e longo prazo, modificar esse tipo de cultura no país”.
Parar de fumar ajuda até pacientes oncológicos
A oncologista Carolina Kawamura ressalta que estimular jovens a não fumarem é a forma mais eficaz de diminuir os índices de câncer, especialmente de pulmão. E chama atenção para os bons resultados que a cessação do tabagismo pode trazer para a saúde até dos pacientes: parar de fumar tem mais impacto no resultado do tratamento e na sobrevida do que diagnosticar precocemente, que é fundamental. “O rastreamento permite a detecção precoce, que reduz em 20% o risco de morte. A cessação do tabagismo reduz o risco de morte em 25%, até porque não impacta apenas no câncer de pulmão, mas também problemas cardiológicos e pulmonares”.
Por conta desses índices, a oncologista reforça que parar de fumar é importante a qualquer tempo, mesmo para quem teve diagnóstico de câncer.
O diagnóstico tardio da doença, aponta a médica, é outra preocupação, já que no Brasil de 80% a 90% das pessoas são diagnosticadas com câncer de pulmão em estágio avançado. Ela comenta que países com programas de rastreamento apresentam índices menores de diagnósticos avançados, porque o câncer de pulmão não tem sintomas nas fases iniciais – quando aparecem sintomas, em geral, a doença está avançada.
“Os programas de rastreamento aumentam as chances de detectar mais precocemente, em uma fase que pode curar mais”. O rastreamento, explica, é feito com tomografia com baixa dose de radiação. “O programa de rastreamento não é para todos os fumantes; são rastreadas pessoas de maior risco, em faixa etária específica, com carga tabágica específica”.
FONTE: www.estadao.com.br