Por Alfredo Guarischi
A cirurgia sempre me fascinou.
Não basta conhecer a anatomia e fisiologia. É uma longa jornada, na qual nem sempre fica clara a diferença entre medo e covardia, a cada incisão e sutura.
Cirurgiões corajosos são como combatentes de forças especiais, nos quais a missão dada será cumprida, desde que seja uma verdadeira missão e não uma aventura. Não bastam ser profissionais de alto desempenho, devem ser também estrategistas. Se recuam, deve ser por necessidade tática e não por covardia. Saber lidar com o medo os diferencia dos covardes, profissionais descompromissados.
Cirurgiões, homens e mulheres, literalmente entram no corpo de um semelhante e, assim, vivem um momento mágico, de total pertencimento entre o médico e o seu paciente. A cirurgia não termina no último ponto e sempre deixa pelo menos duas cicatrizes: uma no paciente e outra no cirurgião.
Complicações podem ocorrer, e jamais haverá uma “desoperação”. No entanto, reoperar será sempre um momento doloroso, frustrante. O cirurgião que reopera o paciente de outro esculápio, independentemente do motivo, tem que ser mais do que experiente.
Esse foi um dos maiores legados de Richard Cattell, americano, nascido de uma família quaker de Ohio, em 1900. Talvez tenha sido o cirurgião, à sua época, que mais resolveu complicações cirúrgicas de outros profissionais.
A mais famosa pode ter sido a de Sir Anthony Eden – Lord Avon -, que sucederia Winston Churchill como primeiro-ministro da Grã-Bretanha. Avon, em 1953, havia sido operado, para tratar uma infecção da vesícula, por duas vezes seguidas, sem sucesso. Cattell foi chamado, pelo médico de Avon, para uma segunda opinião. Churchill exigiu que a nova e terceira cirurgia fosse realizada em Londres. O presidente norte-americano Franklin Roosevelt também foi acionado. Cattell não abriu mão de reoperá-lo em seu local de trabalho, na Lahey Clinic, nos EUA. Era um médico e não um político.
Sempre dedicado, explicava o que estava ocorrendo e, sentado à beira do leito do paciente, desenhando didaticamente o que pretendia fazer, encorajava perguntas. Jamais se vangloriou de seus sucessos em tratar complicações de outros cirurgiões. Fazia questão de ensinar que erros cirúrgicos arruinavam as carreiras dos médicos envolvidos, produzindo infelicidade a todos, mas particularmente ao paciente. Defendia que reconhecer um erro era uma grande oportunidade para aprender e melhorar.
Cuidou com dedicação de seu filho esquizofrênico. Nada o abatia, mas, quando foi diagnosticado com a doença de Parkinson e, em 1962, com leucemia, entristeceu: “Ainda tenho tantas vidas para salvar”, repetia frequentemente.
Faleceu em 1964, e sua instrumentadora de toda vida, Lucy, o descreveu como “quem andou entre os maiores, mas nunca perdeu a capacidade de tocar nas pessoas”.
O fascínio dessa história é entender o significado do que é “tocar”, hoje tão esquecido.
Saudades do Richard
Alfredo Guarischi é médico, cirurgião geral e oncológico, especialista em Fator Humano, Organizador do SAFETYMED e do GERHUS
alfredoguarischi@yahoo.com.br
Fonte: www.oglobo.globo.com